Um dos filmes mais premiados da história do cinema brasileiro é, de fato, uma obra-prima.
Embora escrita há três décadas, a história que Dias Gomes escreveu para o teatro e que serviu de base ao roteiro desenvolvido por Anselmo Duarte, fala de uma dinâmica social complexa que, muitas vezes, castiga o inocente até os limites da desesperança. Para isso, concorrem instituições diversas, que deveriam servir ao bem-estar dos homens, e mesmo seus semelhantes, que convivem em permanente conflito de interesses como em uma tragédia eterna. Tudo muito atual, embora as imagens em preto e branco e a linguagem fora de moda dificultem um pouco a percepção da profunda harmonia.
O “inocente”, no caso, é o protagonista Zé do Burro (Leonardo Villar), um pequeno proprietário rural que sai do campo carregando uma pesada cruz sobre os ombros, rumo à cidade de Salvador. Diante do sofrimento de seu querido burro Nicolau, que fora atingido por um raio, Zé tenta de tudo para recuperar a saúde do amigo. Vendo que nada adianta, decide-se por recorrer a Iansã e promete a ela, em um terreiro de candomblé, doar parte de seu sítio e levar uma cruz até a Igreja de Santa Bárbara. Tudo pelo restabelecimento de Nicolau.
Iansã do candomblé ou Santa Bárbara da Igreja Católica, para Zé, o nome tanto faz. O que importa é que Nicolau se recupera e a promessa precisa ser cumprida. Porém, percorrer sete léguas, enfrentando chuva e sol, e ter a pele esfolada pela grande cruz se mostra o menor dos problemas do protagonista. Ao chegar em Salvador, acompanhado pela esposa Rosa (Glória Menezes, quase irreconhecível), se depara com a resistência do Padre Olavo (Dionízio Azevedo). O sacerdote não aceita que aquela promessa, feita a uma santa do candomblé, seja cumprida na sua igreja. Zé se instala diante da “casa de Deus” e dalí teima em não sair até fazer o que se propôs, ou seja, levar a cruz até o interior da igreja. É então que o contexto da realidade se impõe à vontade do homem simples.
Na atual fase de valorização mundial do cinema latino, em meio ao sucesso de Alice Braga e Rodrigo Santoro, nunca é demais lembrar que há no Brasil uma história cinematográfica pouco conhecida a ser resgatada, uma identidade cultural a ser cultivada e uma linguagem nacional que não precisa seguir o atual padrão hollywoodiano para ter o seu valor (e nem é isso o que a indústria cultural espera, uma vez que está a correr atrás de diferenciais). Lançado em 1962, O Pagador de Promessas é uma das maiores provas disso. Trata-se de um marco do cinema nacional e um testemunho de competência.
O filme ganhou a Palma de Ouro em Cannes como Melhor Longa-Metragem, foi indicado ao Oscar na categoria de Melhor Filme Estrangeiro, além de ter conquistado outras premiações (tanto nacionais quanto internacionais) e projetado a carreira de Othon Bastos, Norma Benguell, Antonio Pitanga, Glória Menezes e Leonardo Villar, hoje ícones da televisão. Em O Pagador de Promessas está implícita a história do povo nordestino, fustigado pelo sertão, pelo coronelismo, pelas crenças religiosas ingênuas, pela crise rural e urbanização, pela imprensa manipuladora que em nada ficava a dever à imprensa marrom da atualidade. Povo este que encontrou na combinação das influências culturais indígenas, africanas e européias sua identidade e sua alegria de viver. Estão ali o acarajé, o candomblé, a capoeira, assim como questões caras a qualquer ser humano como o amor, a cobiça, a lealdade, as paixões, a honra, a malícia, entre tantas outras.
A cena inicial lembra muito Cidade de Deus quanto à evocação ao modo de vida local. Já as últimas cenas, por si só, já valem o filme, tanto pela disposição estética da fotografia, quanto pela evocação simbólica muito bem construída. O mundo fabrica seus mártires e eles abrem as portas para as multidões, fortalecessem as esperanças dos enfraquecidos. Cada final e cada recomeço trás em si um mar de novas possibilidades, mas o tempo passa e algumas coisas nunca mudam. Por isso mesmo é indispensável investigar o passado, reaprender a interpretar, a sentir, a viver e a construir um futuro diferente.
Por Helena Novais, em 02/07/2008